Todo mundo deste pequeno mundo da militância cresceu com a história do 8 de março como sendo um dia internacional de luta das mulheres, proposto por Clara Zetkin na Internacional Socialista em 1910, tendo por referencia a greve das costureiras de Nova York de 1857, que teria sido marcado por um acontecimento trágico, um incêndio no qual teriam morrido cerca de 130 operárias pelo fato das portas estarem fechadas.
Ao que parece acabou por se misturar alguns episódios históricos: uma greve de costureiras em Nova York em 1857 (há quem afirme que não houve sequer a greve), uma greve longa das costureiras, cerca de cinco meses de paralização, em 1910 na mesma cidade de Nova York e um acidente em 1911, o tal incêndio, causado pelas péssimas condições de trabalho no qual teriam morrido cerca de 140 operárias, principalmente porque as portas ficavam fechadas para que as trabalhadoras não se dispersassem na hora do almoço.
Sabemos com certeza, pelo menos, que o dia internacional de luta das mulheres está ligado à luta das mulheres por melhores condições de vida e trabalho, principalmente, a luta pela jornada de 8 horas; e que a iniciativa de se criar um dia que marcasse esta luta parte das mulheres socialistas.
No mesmo ano de 1911 uma das mulheres mais combativas do século XX, no momento como membro da Secretaria da Mulher Socialista da Internacional, a camarada Alexandra Kollontai, propõe que a comemoração do dia da mulher socialista homenageasse um levante de mulheres ocorridos em 1848 que teria levado à promessa de garantir o direito de voto às mulheres. O fato teria ocorrido no dia 19 de março de 1848.
Desta forma foi o dia da mulher socialista comemorado, por iniciativa da Internacional, mas o fato que não se fixou um dia, em cada pais se comemorava em uma data diferente. Na Rússia em 1917, no dia 23 de fevereiro, pelo calendário russo, o que corresponde no calendário ocidental ao dia 8 de março, as mulheres fazem uma enorme passeata nos bairros operários convocando os trabalhadores a entrar em greve contra o czarismo, o que desencadeia a revolução de fevereiro e a queda do Czar.
Só em 1921, já na III Internacional é que a data se fixa como dia Internacional de luta das mulheres: o nosso 8 de março. A ONU, com sua conhecida agilidade, aguardou a década de 1970 para oficializar o dia.
Não sei. As coisas se alienam, se estranham de si mesmas. Aquelas grande marchas militares soviéticas que comemoravam o aniversário da Revolução de 1917, guardavam pouca relação, no essencial, com os trabalhadores segurando armas que tomaram o Palácio de Inverno em outubro/novembro de 1917. O mesmo ocorre com o 8 de março. Salvo as honradas exceções de nossas valorosas militantes feministas, e em geral de nossas organizações de esquerda, o 8 de março virou uma expressão de hipocrisia na qual as empresas dão um rosa às suas funcionárias, as vezes um cartaz bonito de um sindicato que durante o resto do ano não dá a mínima para a questão das mulheres e quase sempre o comércio tentando tirar proveito de namorados, maridos e companheiros com um certo grau de culpa e uma floricultura no caminho.
Não sei se o dia ou o evento foram esses, mas sei que existiu e existe uma classe que se levanta contra a opressão do capital e que essa classe, como dizia a saudosa Beth Lobo, tem dois sexos e que mulheres socialistas e revolucionárias abraçaram suas lutas com sua generosidade e fraternidade, nos lembrando de seu sacrifício e seus sonhos, fazendo com que também se tornem os nossos.
Sabemos também dos modernos incêndios nas modernas oficinas/casas na qual a ordem do capital continua queimando nossas companheiras, assim como sabemos na particular carga que cabe as mulheres nesta ordem de exploração e opressão. Não nos ilude, da mesma forma, o discurso pós moderno que coloca em evidência a questão mulher para esconder suas reais determinações.
Por isso, insistimos em uma março de lutas, um março socialista, gritando na alma o nome de nossos companheiros e companheiras, gritando numa língua que o mundo inteiro entende e procurando nos olhos tristes ou alegres de mulheres que conseguem olhar mais longe, o caminho de volta até nos mesmos.
Aí vai, então, um texto que foi originalmente feito para o boletim do Fórum Nacional de Monitores do 13 de Maio e que aqui foi alterado para esta publicação para marcar nosso 8 de março (por que a luta das mulheres também é, ou devia ser, dos homens):
8 de março, 8 horas… até quando?
Por quanto tempo deve o ser humano trabalhar? Dezoito horas, oito horas, seis horas? Sessenta anos, setenta, uma vida inteira, uma existência? Por quanto tempo é juridicamente aceitável a licitude do ato de sugar as “faculdades físicas e espirituais que existem na corporalidade, na personalidade viva” de um ser humano? Por quanto tempo é legal transformar um ser humano em mercadoria e consumi-lo no processo de trabalho e de valorização? Algumas mulheres, muitos anos atrás, cruzaram os braços sobre os seios cobertos de “devil’s dust”, o pó mortal que cobre o ar nas tecelagens e lhes impregna o pulmão, e disseram que oito horas eram o bastante.
Que por um tempo do dia elas se pertenceriam, que seus corpos seriam caricias e não fios, que seus lábios seriam beijos e não valores de uso, que seus cérebros seriam ideias e não valor. Que por uma parte do dia, ao menos, levariam seus corpos a passear e cuidariam de si e de seus amados, olhariam o mundo lavado pela chuva e respirariam o cheiro puro em seus pulmões cansados.
Quando as portas da fábrica se fecharam não sabemos da expressão de pânico em seus rostos, podemos apenas adivinhar o pavor nos olhos que a pouco brilhavam como apenas brilham os olhos de quem descobre sua força e sua dignidade. Podemos imaginar as narinas dilatadas pelo medo, podemos supor o último abraço na companheira ao lado que chorava enquanto as chamas consumiam o capital constante … o prédio, as máquinas … não mais lambidas pelo fogo do trabalho vivo, mas agora pelo ódio de classe, pelo ódio assassino.
Podemos ainda ouvir o último suspiro e a esperança carbonizada naqueles corpos de meninas …
Naqueles minutos onde tudo ardia viam-se sombras sobre o telhado da fábrica em chamas. Espectros de bruxas e parteiras, de meninas que acariciavam seu sexo e adivinhavam o futuro, fantasmas de mães e filhas, de avós e matriarcas, poetisas e prostitutas que riam dos deuses, dos homens e suas certezas; até que tudo não foi mais que cinzas.
Por isso, quando fevereiro passar com seus cortejos e março novamente trouxer essas cinzas, as recolha com carinho, abrace-as, pois são as cinzas de nossas companheiras, que vagam pelo mundo há tanto tempo nos fazendo a mesma pergunta: até quando… até quando… até quando?
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Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, presidente da ADUFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.
Fonte: http://blogdaboitempo.com.br/2012/03/08/nosso-marco/